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Matei o meu amor na sala de estar

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Homicídio seguido de suicídio, é assim que se fala? Não sou jornalista, não relato fatos. De qualquer forma, não foi uma morte rápida, nem bonita. Talvez se tivesse ocorrido na sala de jantar, sempre arrumada, com um luminoso punhal. Mas não, foi entre a bagunça da sala de estar mesmo. Com uma corda que enroscou-se no pescoço, estrangulou cada um dos sentimentos que restavam e então sufocou o coração.

Eu sempre imaginei que nesse momento, como os filmes  e livros nos levam a acreditar, veria a minha vida passar diante dos olhos. Lamento decepcionar quem lê, mas o que eu vi diz respeito apenas ao meu prazer. O perfume inebriante de incenso e as luzes coloridas refletidas em diversos espelhos foram mais um delírio selvagem causado pela asfixia do que um retrato realístico sobre a vida de alguém.

Então não havia mais volta. Observei o corpo dele, inerte. Eu o amava romântica e incondicionalmente, como havia aprendido nos livros. Mas ele estava sem cor, ausente de paixão. Perguntei-me se ele me perdoaria, da mesma forma que o meu herói byroniano Heathcliff perdoou sua amada e autodestrutiva Catherine¹:

 “Perdôo você, minha querida. Amo a minha assassina. Mas a sua, como eu poderia?

Eu suspirei, jamais saberia a resposta. Enterrei ele no quintal, distante o suficiente para ser esquecido pelo tempo e ainda assim, próximo o bastante para estar ciente da sua presença. Voltei até a sala de estar, olhei para outro o corpo que jazia no chão e procurei me encontrar naquela pessoa que costumava ser eu. Morreu apaixonada, de e por amor. Fiquei um tanto orgulhosa, como o guerreiro que insiste em morrer na batalha. Uma estupidez, mas uma honra também.

Enterrei-a ao lado dele, acreditei ser o mais poeticamente adequado. Considerei que se o amor é manifestado mais pelo desejo de compartilhar o sono (o que se aplica a apenas uma pessoa) do que pelo desejo de fazer amor (que aplica a todos e qualquer um), eles gostariam que fosse assim. Enterrados no quintal da memória, dormiriam juntos pela eternidade dividindo todos os sonhos que jamais seriam realizados neste mundo: as viagens que fariam, a biblioteca e o estúdio que teriam, os três filhos que brincariam no jardim da casa sem carpetes..

No fim aqueles eram apenas dois corpos. Haviam construído um império de ilusão, baseado numa idéia que ruira com o tempo. Mas suas almas, estas estariam para sempre marcadas pelo traço eterno da palavra, da metáfora que originou tão intenso amor.

Quanto à mim, este novo corpo é a prova viva de que escrever é sim, um sono mais profundo que a morte. Escrevo e continuarei escrevendo sobre o meu amor, o farei até esgotar as palavras, acabar as línguas, até que não reste mais nada além da essência do mais puro sentimento.

Começo agora, e talvez uma solteirona, lá pelos trinta ou quarenta³, eu termine de escrever este grande romance. Quem sabe então eu mostre para o mundo, repleta de orgulho, o Mr. Darcy de palavras que criei apenas para mim. Quem sabe o meu eterno amante, aquele que inspirou toda a minha criação, conheça com um certo preconceito a sua versão literária.

E quem sabe, como no clássico de Jane Austen, nós encontremos um caminho apesar de tudo e todos, e tenhamos um final feliz para contar para aqueles três filhos que aguardam pacientemente nossas almas encontrarem os corpos apaixonados que dormem, enterrados no jardim dos sonhos.

Esta sim seria uma grande história, não é mesmo?

Ah, eu preciso ser perdoada. Sou esta romântica, não posso evitar. Eu a mato constantamente, mas ela continua em mim. Não é no meu corpo, é na minha alma, é eterno como a palavra que o seu amor inscreveu. E é incurável.

–*–

¹ Heathcliff e Catherine são os personagens de “O Morro dos ventos uivantes”, romance escrito pela autora Emily Jane Brontë e considerado um clássico da literatura inglesa. [Wikipedia]

² O sono compartilhado e a metáfora da qual nasce o amor são conceitos que Milan Kundera apresenta no magnífico livro A Insustentável Leveza do Ser. [Wikipedia]

² Jane Austen escreveu a primeira versão do clássico romance Orgulho e Preconceito com vinte anos, mas este só foi publicado em 1813 quando ela já contava 37 anos. Mr. Darcy, é o personagem romântico mais.. Bem, leia o livro. Quando recuperar o fôlego, venha você me contar o que acha dele. [Leitura adicional: O impassível Sr. Darcy]

–*–

OK num único texto eu consegui de alguma forma, fazer referência aos meus três livros favoritos de todos os tempos. Hora de respirar um pouco entre tanto ler e escrever ou vou ter uma overdose devido ao excesso de romantismo.

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